Familiar, como minha pele
Alguns acordes. Não precisa mais do que isso, e lá estou eu de volta: a estante de compensado, porta-retratos, caixas de sapato, álbuns de fotografias impressas. A parede amarela no tom exato que eu escolhi, o armário num tom feio de cinza, ao invés do azul-da-prússia que eu queria, mas que nunca consegui fazer o pintor entender como era. O quarto da minha adolescência.
Todos nós temos esses discos, esses que chamamos de ‘nossos’ em pensamento, esses que a imagem da capa já se tornou tão familiar pra você quanto o formato da sua unha do dedo anelar esquerdo. Eles te oferecem uma hora inteira, talvez mais, de um percurso conhecido e amigável; a melodia se desenvolvendo num leve toque de laser, ou na vibração das caixas de som, ou nos impulsos dos seus nervos, como uma precognição initerrupta do som que vem no instante seguinte, e ao mesmo tempo o deleite de seus tímpanos que vibram pela milionésima vez ao mesmo estímulo - com sorte eles ainda o fazem com o mesmo prazer da primeira vez.
Na minha primeira vez eu estava na estrada, e talvez seja por isso que sempre vou achar que Paul Simon foi feito pra se ouvir em viagens. De carro. Na primeira vez, eu tinha pela frente 30 dias initerruptos de convivência intensa com meu pai, minha mãe e irmã, no restrito espaço de um motor-home – uma espécie de trailer já integrado ao carro, no caso, uma kombi. Tinha pela frente um roteiro cuidadoso por todas as cidades legais (e várias nem tanto) de São Paulo ao Chuí, descendo pelo interior e voltando pelo litoral da região sul, e não me cabia de expectativa nos meus 12 anos recém completos.
Depois de uma dezena de vezes que ouvimos a fita K7 que eu ou minha irmã escolhemos, quando já estávamos todos enjoados de qualquer coisa que vinha saindo daqueles alto-falantes, displicentemente consenti que um dos dois adultos escolhessem a próxima fita. Ouço um som estranho do que parecia ser uma sanfona, monótona, que me fez pensar imediatamente que tinha sido um péssimo gesto altruísta. Mas, de tão entediada que eu estava pelo confinamento, qualquer coisa servia. E foi então que começou.
Uma, duas, três, quatro batidas fortes de bateria, e a musica toda se materializou ali na minha frente. Ainda havia a sanfona, sim, mas tinha também um som grave – seria uma tuba?? – e milhares de outros sons diferentes, mas juntos. Todos como peças num vitral... Não era, realmente, nada como a monotonia simplória de todo o universo pop que eu conhecia. Quando ouvi “The Boy in the Bubble” pela primeira vez, estava condenando ao limbo todos os meus discos da Angélica, mas disso eu ainda não sabia.
“Graceland”, do Paul Simon, foi o disco que me tirou a venda dos olhos. Foi o álbum que me mostrou que existia vida inteligente (e muito mais inteligente do que eu, e do que achei que os músicos eram) para além dos refrões simplórios que eu ouvia. Pobres dos meus vizinhos, que nos anos seguintes foram obrigados a partilhar da minha fantástica descoberta à força, e em alto volume. “Graceland” foi o álbum de muitas das minhas crises de adolescência. Paul Simon me viu crescer. Mas disso eu ainda não sabia naquela tarde abafada no espaço restrito de um motor-home.
Depois do arrebatamento da primeira música veio “Graceland”, o carro-chefe do disco. Tantos ritmos juntos...! Um baixo e a batida da bateria dão a ela um pulso de rodas que giram ritmadas – “I’m going to Graceland, Graceland, in Memphis Tennessee”! Mas tem também um piano e vozes suaves que conduzem toda a música com a própria fluência das águas do rio Mississippi. E o que sempre me intrigou, minha secreta parte favorita da música, foram as batidas de baqueta que aparecem aqui e ali, no fundo, quando menos se espera, mas marcando um ritmo invisível que eu só percebi depois de escutá-la pela 20ª vez. Sim, viajei pelas highways americanas com Paul Simon e seu filho de 9 anos, do primeiro casamento.
“I Know What I Know”: dá pra inferir logo de cara que é uma música que ri de si mesma, e tem-se certeza disso com os gritinhos em falsete de uh! uh! uh! uh! ao fundo. (Se você estiver ainda em dúvida, espere pra ouvir como ela termina). Você chegará sorrindo a “Gumboots”, a quarta faixa do disco, que sempre me pareceu uma ótima música para se dançar do jeito mais ridículo que você conseguir, sozinha em seu quarto ou arrancando gargalhadas do seu grupo de amigos mais íntimos.
Depois disso, a solenidade do coral de vozes masculinas africanas, falando algo numa língua que você nunca vai entender, te desarma. Sem nem pensar, você está aberto e atento ao o que quer que seja dito em seguida. E ouve “Diamond on the Soles of Her Shoes”. A metáfora, perfeita, te faz lembrar por um instante do apartheid, da fome e pobreza que aquelas vozes podem ter passado. Mas é só um instante. Logo chega a guitarra que capta sua percepção e te arrasta pela mão, sorrindo, de novo ao ritmo de fazer bater o pé sem perceber. E a crônica surreal sobre a menina que usa diamantes nas solas dos sapatos, e o menino pobre que a carrega no bolso com suas chaves do carro, e a história deles dois, tudo isso colocará um sorriso involuntário no canto da sua boca. Entregue-se novamente aos metais e aos vocais, espere pra ver onde eles te levam.
“You Can Call Me Al”, pra mim, sempre foi uma música diminuída pelo peso de sua responsabilidade: preceder a minha faixa favorita no álbum. Muitas vezes, confesso, adiantei seu refrão de metais pra chegar logo em “Under African Skies”.
Novamente a música começa com uma batida inequívoca, a melodia da guitarra, depois a sutileza de um sininho... Mas nada te prepara pra aquela voz límpida feminina quando ela entra, supostamente em segundo plano, mas ocultando totalmente o próprio Paul, que só consegue recuperar seu auto-controle quando todo o restante da banda entra na brincadeira ao mesmo tempo, ocupando todo o espaço aí à sua volta e fazendo ressoar a história que ele vai te contar, até que esse porta-clips aí na sua frente esteja compenetrado, ouvindo. Ainda vão haver muitas alterações na melodia, paradas e recomeços, outras vozes, outros ritmos, mas você mesmo estará com cara de quem descobriu um segredo quando o ritmo se desvanecer, devagarinho....
E isso porque você ainda nem ouviu admirado “Homeless”, (quase) toda cantada por um impressionante coral negro masculino. As coisas ficam mais tranqüilas pro seu lado depois disso, com a leveza de “Crazy Love, Vol. II”, que se deixa ouvir fácil, fácil. Ainda te aguardam “That Was Your Mother”, outra crônica em forma de música (ou música em forma de crônica?), no ritmo frenético de um jazz eufórico com um toque de música de bandinha, daquelas que se espera ouvir num coreto de cidade do interior.
E, por fim, “All Around the World or The Myth of Fingerprints” é a música que não chama muita atenção pra si, mas que vai gentilmente te conduzindo na direção da saída, de volta para o seu quarto com a estante de compensado, a parede amarela e a cinza-que-deveria-ter-sido-azul-da-prússia. Mesmo que hoje ele tenha só paredes brancas, e os armários planejados sejam de ipê.
“Graceland” me é um disco familiar. Tão familiar como o formato da minha unha do dedo anelar esquerdo, ou como minha pele. Mas nunca vi sua capa impressa, porque sempre o ouvi em uma fita K7 gravada.
Originalmente publicado na Revista YMSK em novembro/06. (Se vc gosta de música e não faz idéia do que é isso, vai lá ver...)
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